No primeiro domingo da quaresma a Igreja nos convida a
meditar a tentação de Jesus no deserto.
A tentação no deserto é a imagem escolhida pela Igreja para
apresentar o ciclo quaresmal, porque assim como Jesus guiado pelo Espírito
Santo permanece no deserto durante quarenta dias para então iniciar seu
ministério profético anunciando a boa nova de Deus. A Igreja se recolhe
penitente por quarenta dias para dignamente celebrar a páscoa.
Entretanto, o meu enfoque não é tanto sobre como a tentação
no deserto pintado pelos evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas se tornaram o
ícone da quaresma para a Igreja.
E sim a lição catequética que estes escritores sagrados nos
deixaram.
Uma lição que nos ensina antropologia teológica, isto é, nos
revela a natureza humana aos olhos da fé e uma ética teológica porque nos educa
a agir bem conforme a fé.
Estes são os pontos que quero analisar em cada tentação
proposta pelo demônio no Evangelho de Lucas e cada resposta dada por Jesus
analisando o que é ensinado a cada momento.
O texto da tentação no deserto se encontra em Lc 4, 1-13 e
em linhas gerais Lucas nos conta que Jesus pleno do Espírito Santo é guiado
para o deserto e que lá em jejum por quarenta dias ele é tentado pelo diabo.
Vamos observar duas coisas, primeiro o lugar, um deserto, eremós em grego, o lugar vazio, a
metáfora da solidão do abandono de si a si mesmo. Segundo o diabo que enquanto
personificação do mal é também a causa da ruptura com a fé. Entre o deserto e o
diabo há a tentação o verbo substantivado pelo evangelista é peirázo que revela que a tentação
é uma experimentação, no sentido de testar, por a prova alguma coisa ou alguém.
Do ponto de vista antropológico a tentação no deserto nos
ensina que a natureza humana é sujeita a alguns tópicos fundamentais como: a satisfação de desejos, vaidade e exercício do poder sobre os
outros e vaidade e a pretensão de se colocar no lugar de Deus.
E do ponto de vista ético a tentação no deserto no ensina
que a excelência moral é reflexo do nosso aperfeiçoamento em contato com o
sagrado, descobrindo seus mistérios e neles adentrando redescobrindo a nossa
relação com o mundo, conosco mesmo e com Deus.
Segundo Lucas durante quarenta dias Jesus não comeu nada e
teve fome (Lc 4,2) e então o diabo lhe disse: “Se és o filho de Deus, manda que
esta pedra se transforme em pão.” (Lc 4,3)
Jesus que como professamos no símbolo dos apóstolos
niceno-constantinopolitano: “é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, gerado não
criado consubstancial ao Pai.”
Isto quer dizer que Jesus é Deus em tudo e também é Homem em
tudo, experimentou a natureza humana e como diz São Paulo: “à nossa semelhança,
ele foi provado em tudo, sem todavia pecar.” (Hb 4,15) ou seja, Jesus enquanto
homem esteve sujeito a tudo o que o homem é sujeito, desejos físicos, raiva,
tristeza e naquele momento com fome e com sede no deserto o diabo o põe a prova
dizendo: “ você não é o filho de Deus? Então se você está com fome, transforme
estas pedras em pão e se satisfaça!” Jesus é tentado a satisfazer suas vontades
e colocar se a serviço de si mesmo, de se entregar as suas necessidades
fundamentais, o ser humano tem fome e sede que transcende o comer e o beber.
A resposta de Jesus a proposta diabólica foi: “Está escrito:
não só de pão vive o homem” (Lc 4,4)
A Resposta de Jesus não é só a resposta que o homem de fé dá
para as adversidades por buscar na providência divina o consolo para suportar a
tribulação que a fome ou a sede pode fazer qualquer um experimentar, mas é a
resposta do homem de fé que conforma sua vontade a vontade de Deus, note-se que
não é um conformar que anula a liberdade, mas uma adesão consciente de que a
vida é mais que a satisfação de necessidades momentâneas.
O diabo não desiste e o leva para o alto de um monte e lhe
mostra todos os reinos da terra cheios de poder e glória e os oferece a Jesus
em troca de adoração (Lc 4, 5-7).
A idolatria sempre foi um problema para o povo de Deus e a
idolatria nasce da necessidade humana de se autosatisfazer. O desejo por poder
e glória é a falsa necessidade humana de alimentar a vaidade o culto ao diabo é
um culto ao próprio homem. É isto que significa diabo, ruptura, cisão, divisão,
confusão.
O símbolo, por outro lado, é aquilo que une. Veja quando citei acima símbolo da nossa
fé, isto é, a profissão de fé que nos une enquanto católicos.
O diabólico, portanto, é o que nos separa de Deus. Por isso
Jesus diz: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará
o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e
à riqueza.” (MT 6,24)
O evangelista ao falar da riqueza está falando do deus da
riqueza “Mamôn”.
Jesus responde: “Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e
só a ele prestarás culto” (Lc 4,8). A recusa de Jesus a oferta feita pelo diabo
é o reconhecimento de que a verdadeira natureza humana só se realiza na
perfeição de Deus seguindo o raciocínio de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para
ti e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em ti.” (AGOSTINHO,
Confissões I, 1.)
Enquanto criado “a imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26)
devemos refletir a bondade do Criador por meio da inteligência que é a marca da
sua bondade.
A ação criadora de Deus é a manifestação concreta da sua
bondade, e a nossa resposta a bondade de Deus é procurarmos ser tão bons quanto
ele, o evangelista exorta: “sede perfeitos, assim como vosso Pai Celeste é
perfeito.” (MT 5,48)
É possível notar que há um princípio ético em questão cujo
fundamento está na concepção de ser humano presente na cultura judaico-cristã.
Uma ética das virtudes que concebe o bem como resposta ao projeto salvifíco do
nosso Criador.
Por fim a última tentação, tendo Jesus recusado as
investidas do diabo, este (o diabo) o transporta para o alto do templo de Jerusalém
e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito:
Ele dará ordem aos teus anjos a teu respeito, para que te guardem. E ainda: E
eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.” (Lc4,
9-11)
Como eu dizia acima as tentações estão inter-relacionadas e
revelam a natureza humana e a sua relação com o mundo e com o próprio Deus.
Nesta tentação o diabo tenta fazer com que Jesus coloque a
providência divina e a ação de Deus à prova, mas como veremos é bem mais que
esta primeira impressão pode nos causar.
Veja que a primeira tentação tenta fazer com que Jesus
procure satisfazer sua fome a qualquer custo, a primeira tentação revela que o
homem é um ser que deseja e que é dotado de vontade. E que a vontade do homem
deve ser orientada pela inteligência, esta é reflexo da inteligência de Deus
que deu ordem as leis da natureza.
E a resposta de Jesus é justamente a de que não é a vontade
desorientada que garante existência e vida plena ao homem.
Na segunda tentação o diabo oferece poder e tenta despertar
a ganância e vaidade de Jesus oferecendo os reinos do mundo todo se ele
prestasse culto a ele.
Esta revela que o desejo desorientado pela inteligência gera
pensamentos irracionais, ilusões, raciocínios equivocados sobre o modo de
conceber a nossa vida.
A segunda tentação nos ensina que o verdadeiro poder vem do
serviço ao outro.
E não da vaidade de controlar o mundo e as pessoas a minha
volta.
A resposta de Jesus é a de que reconhecendo Deus como o
único digno de culto reconhecemos que todos são filhos que se colocam à serviço
para a construção de um mundo melhor compreendendo que cultuar a nossa vaidade
e a nossa ambição alimenta a desigualdade
e oprime o povo de Deus.
A última tentação, a terceira. Quer por Deus à prova. E mais
do que por Deus à prova, quer colocar Deus ao nosso serviço invertendo a nossa
relação com ele.
Todos os discursos de teologia da prosperidade e da
retribuição são formas de nos atirar do pináculo do templo esperando ser
amparado por anjos.
Nesta tentação o diabo quer nos fazer pensar que Deus é quem
deve nos servir e não o contrário, que ele deve se moldar à nossa vontade.
E a resposta de Jesus é magnífica: “Não tentarás o Senhor
teu Deus” (Lc 4,12)
“Não tentarás o Senhor teu Deus” é a resposta genérica que a
sagrada escritura nos dá querendo nos dizer que somos muito pequenos e às vezes
muito pretensiosos para achar que Deus tem de satisfazer todos os nossos
caprichos.
São Paulo nos lembra: “Ele, estando na forma de Deus não
usou de seu direito de ser tratado como deus, mas se despojou, tomando a forma
de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como
um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma
cruz.” (Fl 2, 6-8)
A passagem da Tentação no deserto nos apresenta algumas
disposições inerentes à natureza humana que precisam ser educadas para que o
exercício do bem e a prática da justiça sejam possíveis.
A meditação da tentação de Jesus no deserto é parte dos
grandes exercícios espirituais do cristianismo desde o seu início.
Como já foi falado entre o deserto e o diabo, estando a sós,
em um momento de retiro pessoal cara a cara com quem somos e o que somos
enfrentamos as tentações isto é todas as vontades desorientadas que nos levam a
ruptura com Deus.
A meditação das tentações a forma encontrada pelos evangelistas para ensinar aos primeiros cristãos a educar a vontade e a fazer uso
da inteligência, isto é, da razão para o exercício das virtudes cristãs.
É também o exercício místico com o qual o homem cristão tem
a experiência do abandono em si mesmo para descobrir o outro e Deus como o
outro maior.