terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Tentação no deserto: o exercício espiritual do cristianismo primitivo para os dias atuais



No primeiro domingo da quaresma a Igreja nos convida a meditar a tentação de Jesus no deserto.
A tentação no deserto é a imagem escolhida pela Igreja para apresentar o ciclo quaresmal, porque assim como Jesus guiado pelo Espírito Santo permanece no deserto durante quarenta dias para então iniciar seu ministério profético anunciando a boa nova de Deus. A Igreja se recolhe penitente por quarenta dias para dignamente celebrar a páscoa.

Entretanto, o meu enfoque não é tanto sobre como a tentação no deserto pintado pelos evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas se tornaram o ícone da quaresma para a Igreja.
E sim a lição catequética que estes escritores sagrados nos deixaram.
Uma lição que nos ensina antropologia teológica, isto é, nos revela a natureza humana aos olhos da fé e uma ética teológica porque nos educa a agir bem conforme a fé.
Estes são os pontos que quero analisar em cada tentação proposta pelo demônio no Evangelho de Lucas e cada resposta dada por Jesus analisando o que é ensinado a cada momento.

O texto da tentação no deserto se encontra em Lc 4, 1-13 e em linhas gerais Lucas nos conta que Jesus pleno do Espírito Santo é guiado para o deserto e que lá em jejum por quarenta dias ele é tentado pelo diabo.

Vamos observar duas coisas, primeiro o lugar, um deserto, eremós em grego, o lugar vazio, a metáfora da solidão do abandono de si a si mesmo. Segundo o diabo que enquanto personificação do mal é também a causa da ruptura com a fé. Entre o deserto e o diabo há a tentação o verbo substantivado pelo evangelista é peirázo que revela que a tentação é uma experimentação, no sentido de testar, por a prova alguma coisa ou alguém.

Do ponto de vista antropológico a tentação no deserto nos ensina que a natureza humana é sujeita a alguns tópicos fundamentais como: a satisfação de desejos, vaidade e exercício do poder sobre os outros e vaidade e a pretensão de se colocar no lugar de Deus.
E do ponto de vista ético a tentação no deserto no ensina que a excelência moral é reflexo do nosso aperfeiçoamento em contato com o sagrado, descobrindo seus mistérios e neles adentrando redescobrindo a nossa relação com o mundo, conosco mesmo e com Deus.

Segundo Lucas durante quarenta dias Jesus não comeu nada e teve fome (Lc 4,2) e então o diabo lhe disse: “Se és o filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão.” (Lc 4,3)
Jesus que como professamos no símbolo dos apóstolos niceno-constantinopolitano: “é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, gerado não criado consubstancial ao Pai.”

Isto quer dizer que Jesus é Deus em tudo e também é Homem em tudo, experimentou a natureza humana e como diz São Paulo: “à nossa semelhança, ele foi provado em tudo, sem todavia pecar.” (Hb 4,15) ou seja, Jesus enquanto homem esteve sujeito a tudo o que o homem é sujeito, desejos físicos, raiva, tristeza e naquele momento com fome e com sede no deserto o diabo o põe a prova dizendo: “ você não é o filho de Deus? Então se você está com fome, transforme estas pedras em pão e se satisfaça!” Jesus é tentado a satisfazer suas vontades e colocar se a serviço de si mesmo, de se entregar as suas necessidades fundamentais, o ser humano tem fome e sede que transcende o comer e o beber.

A resposta de Jesus a proposta diabólica foi: “Está escrito: não só de pão vive o homem” (Lc 4,4)
A Resposta de Jesus não é só a resposta que o homem de fé dá para as adversidades por buscar na providência divina o consolo para suportar a tribulação que a fome ou a sede pode fazer qualquer um experimentar, mas é a resposta do homem de fé que conforma sua vontade a vontade de Deus, note-se que não é um conformar que anula a liberdade, mas uma adesão consciente de que a vida é mais que a satisfação de necessidades momentâneas.

O diabo não desiste e o leva para o alto de um monte e lhe mostra todos os reinos da terra cheios de poder e glória e os oferece a Jesus em troca de adoração (Lc 4, 5-7).
A idolatria sempre foi um problema para o povo de Deus e a idolatria nasce da necessidade humana de se autosatisfazer. O desejo por poder e glória é a falsa necessidade humana de alimentar a vaidade o culto ao diabo é um culto ao próprio homem. É isto que significa diabo, ruptura, cisão, divisão, confusão.
O símbolo, por outro lado, é aquilo que une. Veja quando citei acima símbolo da nossa fé, isto é, a profissão de fé que nos une enquanto católicos.

O diabólico, portanto, é o que nos separa de Deus. Por isso Jesus diz: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e à riqueza.” (MT 6,24)
O evangelista ao falar da riqueza está falando do deus da riqueza “Mamôn”.
Jesus responde: “Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto” (Lc 4,8). A recusa de Jesus a oferta feita pelo diabo é o reconhecimento de que a verdadeira natureza humana só se realiza na perfeição de Deus seguindo o raciocínio de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para ti e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em ti.” (AGOSTINHO, Confissões I, 1.)

Enquanto criado “a imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26) devemos refletir a bondade do Criador por meio da inteligência que é a marca da sua bondade.
A ação criadora de Deus é a manifestação concreta da sua bondade, e a nossa resposta a bondade de Deus é procurarmos ser tão bons quanto ele, o evangelista exorta: “sede perfeitos, assim como vosso Pai Celeste é perfeito.” (MT 5,48)
É possível notar que há um princípio ético em questão cujo fundamento está na concepção de ser humano presente na cultura judaico-cristã. Uma ética das virtudes que concebe o bem como resposta ao projeto salvifíco do nosso Criador.

Por fim a última tentação, tendo Jesus recusado as investidas do diabo, este (o diabo) o transporta para o alto do templo de Jerusalém e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem aos teus anjos a teu respeito, para que te guardem. E ainda: E eles te tomarão pelas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.” (Lc4, 9-11)


Como eu dizia acima as tentações estão inter-relacionadas e revelam a natureza humana e a sua relação com o mundo e com o próprio Deus.
Nesta tentação o diabo tenta fazer com que Jesus coloque a providência divina e a ação de Deus à prova, mas como veremos é bem mais que esta primeira impressão pode nos causar.

Veja que a primeira tentação tenta fazer com que Jesus procure satisfazer sua fome a qualquer custo, a primeira tentação revela que o homem é um ser que deseja e que é dotado de vontade. E que a vontade do homem deve ser orientada pela inteligência, esta é reflexo da inteligência de Deus que deu ordem as leis da natureza.
E a resposta de Jesus é justamente a de que não é a vontade desorientada que garante existência e vida plena ao homem.

Na segunda tentação o diabo oferece poder e tenta despertar a ganância e vaidade de Jesus oferecendo os reinos do mundo todo se ele prestasse culto a ele.
Esta revela que o desejo desorientado pela inteligência gera pensamentos irracionais, ilusões, raciocínios equivocados sobre o modo de conceber a nossa vida.

A segunda tentação nos ensina que o verdadeiro poder vem do serviço ao outro.
E não da vaidade de controlar o mundo e as pessoas a minha volta.
A resposta de Jesus é a de que reconhecendo Deus como o único digno de culto reconhecemos que todos são filhos que se colocam à serviço para a construção de um mundo melhor compreendendo que cultuar a nossa vaidade e a nossa ambição alimenta a desigualdade  e oprime o povo de Deus.

A última tentação, a terceira. Quer por Deus à prova. E mais do que por Deus à prova, quer colocar Deus ao nosso serviço invertendo a nossa relação com ele.
Todos os discursos de teologia da prosperidade e da retribuição são formas de nos atirar do pináculo do templo esperando ser amparado por anjos.
Nesta tentação o diabo quer nos fazer pensar que Deus é quem deve nos servir e não o contrário, que ele deve se moldar à nossa vontade.
E a resposta de Jesus é magnífica: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Lc 4,12)

“Não tentarás o Senhor teu Deus” é a resposta genérica que a sagrada escritura nos dá querendo nos dizer que somos muito pequenos e às vezes muito pretensiosos para achar que Deus tem de satisfazer todos os nossos caprichos.
São Paulo nos lembra: “Ele, estando na forma de Deus não usou de seu direito de ser tratado como deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, à morte sobre uma cruz.” (Fl 2, 6-8)

A passagem da Tentação no deserto nos apresenta algumas disposições inerentes à natureza humana que precisam ser educadas para que o exercício do bem e a prática da justiça sejam possíveis.
A meditação da tentação de Jesus no deserto é parte dos grandes exercícios espirituais do cristianismo desde o seu início.

Como já foi falado entre o deserto e o diabo, estando a sós, em um momento de retiro pessoal cara a cara com quem somos e o que somos enfrentamos as tentações isto é todas as vontades desorientadas que nos levam a ruptura com Deus.

A meditação das tentações a forma encontrada pelos  evangelistas para ensinar aos primeiros cristãos a educar a vontade e a fazer uso da inteligência, isto é, da razão para o exercício das virtudes cristãs.
É também o exercício místico com o qual o homem cristão tem a experiência do abandono em si mesmo para descobrir o outro e Deus como o outro maior.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quaresma e Ano da Fé



Nesta quarta-feira, 13 de Fevereiro iniciamos a quaresma que dentro do grande círculo litúrgico da Igreja Católica marca os preparativos para a páscoa do Senhor.
No entanto o primeiro dia da quaresma, uma quarta-feira que não é uma quarta qualquer, mas uma quarta-feira de cinzas.
Marcado pela reflexão, penitência e oração a quarta-feira de cinzas é também o marco inicial da campanha da fraternidade promovido em todas as dioceses brasileiras encabeçada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) com a qual voltaremos nossos olhos para a juventude em clima de preparação para a grande Jornada mundial da Juventude presidida pelo Santo Padre, o Papa.

Este ano, porém, não é um ano qualquer, mas um Ano da Fé! Aberto pelo Papa Bento em Outubro do ano passado aproveitando o aniversário de 50 anos do Concílio Vaticano II e os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica promulgado pelo Beato Papa João Paulo II.
O que é então o Ano da Fé?
A proposta do nosso Sumo Pontífice, proposta a todos os cristãos é a de que o ano da fé seja um ano em que todos “avancem para águas mais profundas” (Lc 5,4), isto é, que todos mergulhem no mistério da nossa fé vivendo e celebrando a misericórdia de nosso Deus através da celebração Eucarística e de todas as atividades pastorais com as quais nos envolvemos em nossas comunidades eclesiais.
É por isso que o Santo Padre nos escreve com fervoroso zelo apostólico: “Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é ‘a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força’. Simultaneamente, esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e refletir sobre o próprio ato com que se crê é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.” (Porta Fidei,9)
Assim como na quaresma somos convidados pelo profeta: “Rasgai os vossos corações” (Jl 2,13). O Santo Padre nos convida a redescobrir os conteúdos da fé professada e isto só é possível como ato sincero de conversão.

Uma coisa leva a outra. Com efeito, São Paulo Apóstolo é outro que nos convida a este mergulho no mistério da fé: “em nome de Cristo exercemos a função de embaixadores e por nosso intermédio é Deus mesmo que vos exorta. Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus. Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus.” (2Cor 5,20)
O Ano da Fé é também um pedido apostólico para que nos deixemos reconciliar, para que realmente façamos uma conversão, isto é, uma mudança radical em nossas vidas acolhendo assim a graça de sermos chamados filhos de Deus.

O profeta , o apóstolo e o Santo Padre apenas reforçam as palavras de Jesus narradas pelo evangelista Marcos e que ouvimos toda quarta-feira de cinzas quando as cinzas nos são impostas pelo sacerdote ou um de seus ministros: “Convertei-vos e credes no evangelho” (Mc 1,15)
O tempo do reino de Deus chegou e somos convidados a entrar nele através da “Porta da Fé”. A conversão é um ato reflexivo pessoal que emerge na vida comunitária, nos faz perceber que buscamos o melhor e que através da profissão falada e vivenciada da fé alcançaremos o melhor juntos, isto é a santidade, pois nosso Deus também é comunidade sendo três em um só e espera de todos os cristãos uma resposta de amor e justiça, por isso, rasguemos nossos corações e com alegria entremos no reino para participarmos da ceia do Senhor, pois somos Felizes por ter recebido de Deus o convite para cear com ele.