sexta-feira, 16 de março de 2012

Comentário à parábola do pai misericordioso

Durante a Quaresma tenho meditado sobre o perdão como um dos pilares fundamentais da ética cristã proposta por nosso Salvador. No entanto ao longo das semanas meditando as leituras do antigo testamento tenho percebido que o perdão não é uma novidade cristã, mas que já está presente no judaísmo e no profetismo antigo.

O perdão é tão importante para os nossos irmãos judeus que eles dedicam um dia do ano para celebrá-lo. O Yom Kipur, o dia do perdão compõe o calendário judeu e faz parte da liturgia judaica. Se por um lado os judeus dedicam um dia para celebrar o perdão, os cristãos o celebram todos os dias na missa através do ato penitencial e no sacramento da reconciliação.

Momento no qual reconhecemos nossas limitações e nossa condição de pecador e buscamos através do perdão a cura das nossas misérias para então se esvaziando do pecado possamos nos preencher da santidade oferecida na sagrada Eucaristia. Para tanto, tenho meditado algumas passagens sobre o perdão no Evangelho, aproveitando o caráter penitencial da Quaresma.

Comecei com a oração do Pai-nosso e agora com a parábola do filho Pródigo buscarei demonstrar a pedagogia do perdão proposta por nosso Salvador. Seguirei o mesmo esquema do Pai-nosso postarei o texto e o comentarei em partes ou em linhas enfatizando as várias camadas que a parábola apresenta.

Parábola do pai misericordioso (Lc15,1-3.11-32).

“Todos os publicanos e pecadores se aproximavam dele para ouvi-lo. E os fariseus e os escribas murmuravam entre si: ‘ Este homem recebe os pecadores e come com eles. ’ Então Jesus contou-lhe esta parábola: ‘Um homem tinha dois filhos. E o mais novo disse ao pai: ‘Pai, dá-me a minha parte da herança (ousía).’ O pai dividiu os bens (bíos) entre eles. E depois de alguns dias o filho mais novo ajuntou tudo o que possuía e partiu para um país distante e dissipou (dieskorpizen) a sua herança levando uma vida dissoluta (zoon asotós).

Nesta primeira parte da narrativa temos de um lado o filho mais novo pedindo o que é seu por direito da herança (ousía) paterna. É muito interessante como Lucas sendo grego conhecia muito bem o tesouro linguístico que a língua grega oferece. Primeiro coloca na boca do filho o pedido pela herança (ousía) termo tão consagrado na filosofia entendido no seu sentido mais comum como o patrimônio familiar, ou patrimônio construído no seio de uma tradição familiar. Depois Lucas escreve: ‘O pai dividiu os bens (bíon) em grego literalmente o evangelista escreve separou entre eles o viver (tón bíon).

Bíos é vida assim como zoé, mas o seu significado é diferente de zoé . Enquanto zoé é vida no sentido de ser dotado de movimento (expressa o sentido da palavra latina "anima" quando falamos dos animais, isto é de seres vivos porque estes se movimentam e tem capacidade de sentir), bíos é vida no sentido de "o que engloba o viver", aquilo que torna a vida possível, bíos é também o modo de viver de alguém ( Desse modo a biologia estuda a vida não apenas no sentido de estudar os animais, mas todas as "formas de vida", falamos em bioma como o lugar ou habitat de animais e plantas).

Então, ousía e bíos significam no primeiro momento a herança que Deus deixa aos homens através da aliança e o modo de vida que Deus oferece aqueles que se aliam a ele. No entanto, o filho mais novo pega o que recebeu, viaja para um país distante e lá dissipa (dieskorpizen) e leva uma vida dissoluta (zoon asotós).’

Note-se no vocábulo dieskorpizen, um verbo composto "dia" mais "skorpizo". Skorpizo significa dispersar, separar e a preposição "dia" também indica quando associada ao verbo a intenção de dividir alguma coisa acompanhando da expressão: vida dissoluta (zoon asotós) o vocábulo asotós significa libertinagem, desordem, ou seja uma vida desregrada o fez dispersar o tesouro precioso que seu pai havia lhe transmitido. Zoon não é o modo de vida, mas o modo de conduzir a vida. Isso quer dizer aquilo que fazemos com a nossa vida, as escolhas que tomamos no dia-a-dia.  Essa vida vivida em em asotía, isto é, em libertinagem também é sem salvação, pois etimologicamente asotós é composto de alfa privativo (por exemplo, em "apatia" que significa literalmente sem paixão, indiferente) mais o verbo sozo que significa salvar, conservar algo.

 Os pecadores que Jesus recebe são aqueles que receberam a herança e a dissiparam. Depois Jesus continua: ‘Depois que dissipou tudo o que possuía e houve uma grande fome naquele país, ele começou a passar privações. Foi então, empregar-se com um dos homens daquela região, que o mandou cuidar dos porcos. E desejava matar a fome com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.’ Esse momento da parábola é fantástico porque trata da condição em que o pecado nos coloca.

O pecado, com efeito, tira a nossa dignidade, nos reduz a uma condição de miséria plena. Grandes filósofos e teólogos como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino compreenderam muito bem que o pecado tira de nós a liberdade, nos legando uma tal condição em que não podemos escolher o modo de viver. Desse modo, ficamos presos a necessidade de satisfação dos desejos e somos incapazes de sair do circulo vicioso que o pecado nos impõe.

Todavia, o modo como isto é contado na parábola é assombroso. Primeiro, porque o jovem faminto busca um trabalho para ter dinheiro para se sustentar. Observemos que a vida de luxo-ria que ele levava não reflete a boa vida que ele tinha junto do pai e do irmão mais velho. O bem viver não consiste como já era dito por filósofos não cristãos em viver satisfazendo os seus prazeres (sexuais, gastronômicos e estéticos). Mas, em viver com justeza, e ou harmonia com o universo, o que os filósofos e teólogos cristão substituirão por viver na graça de Deus e em busca de Deus.

Depois, o filho mais novo é empregado por um homem daquele país e tem o encargo de tratar dos porcos. Todo judeu sabia e Jesus não era uma exceção a regra, que o porco era um animal impuro e, portanto não podia ser comido. Porém, imaginem aqueles fariseus e escribas, publicanos e pecadores ouvindo de Jesus que aquele jovem estava com tanta fome que queria comer do que era dado aos porcos. Se nós hoje em dia que consumimos carne de porco não podemos sequer pensar no que é dado para estes animais, imagina um judeu? Sobretudo um fariseu que conhecia a lei e a tinha bordado nas faixas de suas vestes, para externalizar que as conhecia, que evitava a impureza e o pecado.

A parábola é muito bem construída. Tomando as tradições e costumes do povo judeu de modo a propor uma visão da condição humana. A parábola mostra o retrato daquele que cai e se torna escravo do pecado.

Mas eis que de repente: ‘Voltando a si disse: quantos empregados de meu pai têm pão com fartura e eu passando fome. Vou-me embora para a casa do meu pai e dizer a ele: ‘ Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno (axios) de ser chamado seu filho. Trata-me como um dos teus empregados.’ Esse voltar a si ( eis eauton elthon) é o ponto de conversão. Momento daquele "clique" mental. Quando ele reconhece que ‘não é digno (axios) de ser chamado filho começa o movimento para a liberdade, mas ainda não chegamos no perdão.
 
O jovem pensa em receber do pai o tratamento dado a um empregado. O empregado na esfera familiar da antiguidade tinha pouca ou nenhuma dignidade, era uma ferramenta animada dos proprietários (tanto a palavra grega "doulos" quanto a palavra "ancillae" exprimem a o sentido de servidão análogo ao do escravo). O pai daquele jovem tratava bem os empregados de modo que o pão era farto. O jovem então: ‘voltou para a casa do seu pai. Ainda estava longe, quando o seu pai o viu, encheu-se de compaixão, correu, lançou-se ao seu pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno (axios) de ser chamado seu filho. ’

O pai, porém,  disse aos seus servos: ‘Ide depressa, trazei a melhor túnica e vesti-o com ela, ponha-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho cevado e matai-o; comamos e festejamos, pois este meu filho estava morto (nekrós) e tornou a viver (anezesen) estava perdido (apololos) e foi encontrado (eurethé). ’ E começou a festejar.

 Chegamos a um momento importante da parábola, porque podemos imaginar a angustia do pai que no gesto de respeito, ainda que o seu filho, o mais novo, o mais inexperiente, tomando posse do seu patrimônio o dissolve. Gastar tudo o que foi construído com suor e muito trabalho. Aquele pai mesmo sabendo que o seu filho não seria sensato e mesmo assim respeita o seu desejo de receber sua herança e de partir para o mundo.

Esta é a metáfora que Jesus usa para mostrar como é a nossa relação com Deus. Deus não aponta para nós nossas limitações e confia a nós o seu patrimônio e muitas vezes achamos que sabemos o que estamos fazendo até que nos damos conta de que não somos dignos de ser chamado de filho, mas que se o pai quiser pode nos tratar como empregados.

E a atitude do Pai é emblemática, o Pai podia ter esperado o filho chegar pedir desculpas, ou mesmo passar um sermão antes do filho dizer qualquer coisa e o que o pai fez? Ele viu o seu filho tomado pela miséria e  tomado de compaixão, o pai entendeu a dor de seu filho. O pai então, corre, lança-se sobre o pescoço do rapaz e o beija, O filho pede perdão, mas o pai não quer saber, o que importa é que ele voltou! O que importa é que o filho estava ali. E o pai manda seus servos escolher a melhor veste, por um anel no dedo e sandálias nos pés e mais manda que um novilho gordo recém alimentado seja morto e que uma grande festa seja dada pela volta do jovem.

O pai que outrora estava triste e angustiado pelo filho perdido agora exclama: ‘ ele estava morto (nekrós) e voltou a viver (anezesen) estava perdido (apololos) e foi encontrado (eurethé).’ Nekrós é geralmente usado em grego pra designar o corpo morto, o cadáver.

Enquanto que o verbo anazao significa praticamente ressuscitar, ou literalmente reviver porque a preposição “ana” indica o movimento de baixo para cima e o verbo zao que deu origem ao substantivo zoé significar dotado de vida, de movimento. Apololos significa perder, aniquilar, destruir. Estar perdido é se deixar destruir, corromper pelo pecado e ser encontrado diz respeito justamente ao contato por meio da experiência salvífica que o amor incondicional de Deus oferece a cada um de nós.

No entanto, a parábola não termina aqui. A lição sobre o perdão não terminou. Jesus acabou de Mostrar que Deus não mede esforços para acolher a todos indiferente do uso que é feito do seu patrimônio, mas isso não quer dizer que Deus seja permissivo e conivente com o pecado, pelo contrário, ele acolhe, e perdoa, mas espera de nós a conversão sincera e conhece o nosso intento de mudar ou não de vida.

O filho mais velho não estava em casa naquele momento ele retorna e ouve músicas e danças, chama um dos empregados e pergunta o que está acontecendo ali o empregado lhe responde: ‘É teu irmão que voltou e teu pai matou um novilho gordo, porque o recuperou com saúde.’ Então ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai então sai e suplica que o seu filho mais velho entre. O filho mais velho responde: ‘Há tantos anos que te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com os meus amigos. Contudo veio este teu filho, que devorou os teus bens com prostitutas e para ele matas um novilho gordo!’ O pai responde: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. “Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois este teu irmão estava morto (nekrós) e agora vive (ezesen) estava perdido (apololos) e foi encontrado (eurethé).”

A lição sobre o perdão só termina quando o pai mostra ao irmão mais velho que a volta do irmão mais novo merece ser comemorada. O filho mais velho não havia percebido que o tempo todo o patrimônio do seu pai era de fato seu também. De fato, ele sempre estava com o seu pai. É por estar sempre junto do pai que tudo que é do pai é do filho. Mas o filho mais velho ainda não tinha entendido que o patrimônio tinha como objetivo sustentar a vida e que ainda que o filho mais novo tivesse devorado os bens com prostitutas, o que o pai queria era ter seus dois filhos perto dele, juntos e com saúde.

 A volta do filho mais novo é a metáfora da nossa conversão. Jesus faz uso desta parábola para mostrar que o desejo de Deus é sempre o de estender o seu amor a todos. Principalmente aos pecadores. Os fariseus e os escribas representados na parábola pelo filho mais velho são chamados também à mesa da liturgia do perdão. São também chamados a celebrar  e viver o desejo  que todos os homens têm de se saciar de Deus.